terça-feira, 17 de maio de 2011

O homem do campo e suas verdades



Existem situações em que a gente não tem como evitar. Esta crônica, por exemplo, que estou publicando, foi-me enviada por e-mail, acredito pelo menos três vezes por pessoas diferentes. O seu conteúdo foi a maneira que Barbosa Melo e Luciano Pizzatto, encontraram para descrever o paradoxo existente entre a realidade urbana e a do campo.

Sob o formato de uma carta/sátira, o texto além de muito interessante, transmite com muita propriedade verdades reais, inegáveis e incontestáveis. Prova inequívoca de que existe maquiagem entre a verdade urbana e a rural exaltando suas diferenças, e estas diferenças precisam ser avaliadas com mais critério e se possível eliminadas. A crônica está sendo transcrita na íntegra, sem qualquer mudança gramatical ou textual. Leia com atenção e se possível fazendo sua análise pessoal.

Com adaptação de Barbosa Melo, esta carta foi escrita por Luciano Pizzatto, engenheiro florestal, especialista em direito, sócio ambiental e empresário; Diretor de Parques Nacionais e Reservas do IBAMA nos anos 1988 e 1989. Também foi ganhador do Prêmio Nacional de Ecologia.


Carta do Zé agricultor para Luis da cidade



Prezado Luis, quanto tempo.



Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo. Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava.

Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo?... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra né Luis?

Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. Tô vendo todo mundo falar que nóis da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sítio do pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.

Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né Luis?

Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né ...) contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nóis num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana aí não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?

Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encumpridar uma cama, só comprando outra né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.

Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luis, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.

Depois que o Juca saiu eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e meia, aí eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.

Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ía fazer, mas só que eu sozinho ía demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luis, aí quando vocês sujam o rio também pagam multa grande né?

Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado.

Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora! Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.

Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo aí eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.

Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, aí tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.

Eu vou morar ai com vocês, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Aí é bom que vocês e só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nóis, os criminosos aqui da roça.

Até mais Luis.

Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.


Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em
dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.

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Imagens: Google imagem





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19 comentários:

andrade jorge disse...

Dilson, ja era para ter vindo aqui antes, olha que surpresa que encontrei, cada texto maravilhoso, esse então... Parabéns
Andrade Jorge
convido pra visitar meu blog
http://andradejorge.zip.net

BUSSOLA LITERÁRIA disse...

Fico feliz que tenha gostado do Bússola Literária, estimado amigo Andrade Jorge. Obrigado pela visita, esperamos contar sempre com sua gentil presença. Quanto ao seu blog prometo visitá-lo com frequência.

Abraço fraterno.

Juraci disse...

De fato a desigualdade entre o homem do campo e o da cidade, é grande o tratamento Tb é bem cruel pás o humildes.
Na verdade a lei que vigora com igualdade para todos é somente a lei divina.
Dilson parabéns mais uma vez pela excelente postagem, a imagens são lindas, olha foi uma viagem maravilhosa acompanhando de perto, todo o desfecho desta história verdadeira.
Bjusssss em seu coração.
Juraci

Denise Moraes disse...

Dilson, o Bússola Literária é fantástico e o texto " O homem do campo... ", tem tudo a ver com a temática das minhas exposições. Espero que o cochilo não saia do campo, pois aqui se decepcionará com tantas catástrofes e um órgão que cuida do bem - estar próprio. Acredite que não recebi nenhuma visita do Meio Ambiente em minha mostra? Levei convite pessoalmente a Secretária do Meio Ambiente e ao demais. Eu tenho um primo que é chefe do IBAMA.
Fotografei aqui na Cidade saúde, Guarapari, um lixão embaixo da ponte.
Gostei das imagens ilustrativas, visitei a Pinacoteca há 3 semanas e fotografei a primeira obra que ilustra.
Passarei a acessar o Bússola literária.
Obrigada pela sua obra enriquecedora.
Denise Moraes.

BUSSOLA LITERÁRIA disse...

Obrigado Juraci e Denise Moraes pelas simpáticas visitas. Ficamos muito contentes com as opiniões expressadas nos seus comentários. Esperamos tê-las sempre com a gente nos prestigiando com suas gentis visitas e seguidoras do Bússola Literária. Abraço fraterno...

MELL GLITTER disse...

Que lindo texto!Emocionante!A simplicidade é algo que sempre encanta!!!!Bravo!Bjs

vanda ferreira vanda ferreira bugra sarará disse...

Dilson, hoje é um grande dia de sucesso em minha vida porque te encontrei. Tenho abordado temas ecológicos, em especial a ruralidade e sinto pesares em meu cérebo, meu coração e até muscular porque há discriminação gritante (fobia ecológica, como denomina-se?) pelo expresso desinteresse pelo tema por parte da sociedade em especial escritores. Peço licença para divulgar a "Carta do Zé". Obrigada, eita felicidade que explode hoje!

BUSSOLA LITERÁRIA disse...

Estimadas Mell Glitter e Vanda Ferreira, a visita de vocês mto nos encantou, principalmente por terem gostado do tema ora abordado. Esperamos contar sempre que puderem com os seus preciosos retornos. Abraços fraternos. Obrigado.

GRUPO NARRADORES DE CORDEL disse...

O texto do amigo é fantástico! Entendi muito bem a dualidade.
Abraços "CORDELADOS"

LunasCafePoetico disse...

uma bela e verdadeira história, sim...bjuuu

Graça Carpes disse...

Parabéns... Seguirei seu norte.
Voltarei com calma e mais tempo para
apreciar todo o conteúo.
Carinho.

Anônimo disse...

Olá, Dilson, passando aqui para conhecer o blog. Não sei se o caminho adotado pelo governo seria o mais adequado para tentar melhorar as condições do nosso habitat. Porém, que urge a necessidade de medidas, isso me parece evidente. E infelizmente, em sua ingenuidade, o homem que vive no interior muitas vezes realmente colabora e muito para a destruição do meio ambiente, sem ter sequer plena consciência do que está fazendo. Claro que nos grandes centros urbanos a coisa ainda é pior, mas justamente por isso é preciso fazer alguma coisa - em todo o mundo - para tentar salvar o que ainda resta. Fico pasmo como os governos de todo o planeta vão "tocando a vida" como se nenhuma grave ameaça pairasse no ar. E o problema da água é gravíssimo. Um grande abraço, valeu pelo convite para conhecer o blog. Ricardo Alfaya.

BUSSOLA LITERÁRIA disse...

Estimados Grupo Narradores de Cordel, Luna Lux, Graça Carpes e Ricardo Alfaya pela visita. Esperamos que retornem outras vezes para conferir nossas publicações. Obrigado.

Abraço fraterno...

fulinaíma produções disse...

Dilson, bom demais o teu blog, nasci numa fazenda, Santa Maria de Cacomanga, em Campos dos Goytacazes, norte do Estado do Rio de Janeiro, e cada texto no blog, me remete a infância simples da roça, ao mesmo tempo em que me reforça na memória as desigualdades sociais. parabéns, grande abraço. artur gomes

Basilina disse...

Dilson, sempre um prazer visitar o Bússola Literária. Trabalho primoroso de seleção dos textos publicados e ilustração. Parabéns! A crônica evidencia uma grande verdade. Eu aprendi na faculdade de Direito que a lei é para todos, sim, mas seu aplicador deve conhecer a relidade onde ela vai ser aplicada e o legislador tb deve ter isso em mente. Mas não é o que acontece, infelizmente...

Wendy disse...

Minhas reverências ao homem humilde trabalhador.
Honrosa homenagem ao homem do campo, realmente
as desigualdades sociais é que nos aflige e causa tristeza
Parabéns Dílson o Bússola Literária sempre nos encantam
Com postagens cada uma mais honrada que a outra
Bjusssss Wendy

BUSSOLA LITERÁRIA disse...

Obrigado, Artur Gomes, Basilina e Wendy, pela presença no Bússola Literária. Esperamos contar frequentemente com suas atenciosas visitas, nos ajudando a estarmos sempre melhorando, através dos seus comentários. Abraço fraterno...

Roberta de Souza disse...

Adorei seu blog!!!

Estarei sempre por aqui!

Coloque um feed de notícias por e-mail, assim fica mais fácil para te acompanhar!

bjkas

Jacinto Guerra disse...

Com pouco tempo, no momento, fiz uma rápida leitura no Bússula Literária, que achei bem interessante. Parabéns!