Fernando Pessoa - Virgílio no espelho
Por Reinaldo Azevedo
Fernando Pessoa - Virgílio no espelho: Texto originalmente publicado na revista Bravo!, pelo jornalista Reinaldo Azevedo, Edição nº 13, de outubro/1998, parte integrante do livro Contra o Consenso, publicado pela Editora Barracuda. Posteriormente foi transcrito em Veja de 23/12/1998 e depois no Blog do autor hospedado no site da revista Veja em 22/01/2007. Esta é uma das razões pela qual o Bússola Literária se orgulha de publicar também em suas páginas, este trabalho editorial fantástico de Reinaldo ao transmitir através da sua extraordinária sensibilidade intelectual e, de forma cuidadosa esta reflexão analítica/informativa literária sobre a obra do poeta Fernando Pessoa. Aproveite bem. Esta publicação está autorizada pelo Autor.
A apreciação crítica da obra de Fernando Pessoa esbarra, de cara, numa dificuldade. De tal sorte já se tentou apreender a sua especificidade que, ao fim, o trabalho resulta ou em redundância ou em impotência crítica, como se jamais avançássemos além da periferia da obra, passando por caminhos excessivamente conhecidos ou então nos fixando em arrabaldes de irrelevância. É o correspondente crítico da sensação de encantamento basbaque que experimentamos depois de ler cada poema: “Como alguém conseguiu ser tão grande, intenso, inteiro, personalista e, ao mesmo tempo, dialogar com toda uma era, traduzir sentimentos e sensações que dizem respeito a todos e a cada um de nós?”.
Com a possível exceção do irlandês Yeats (1865- 1939), um caso eventualmente mais complexo, não há na poesia de nenhuma outra língua moderna quem tenha sido tão ambicioso nos horizontes e tão radicalmente solitário. Na impossibilidade de flagrar em todos os seus contornos o bicho interno que corrói a alma do poeta, resta a tentativa de localizar Fernando Pessoa no seu tempo, afinal e sempre um poeta português.
Pessoa foi o autor completo de um país decadente. Um dos maiores poetas de uma língua moderna só se pôde fazer num país então — e por muitas décadas — obscurecido pela sombra de um passado glorioso. De Pessoa, pode-se dizer praticamente o inverso do que dizia Eliot de Virgílio (71-19 a.C.). No ensaio O que é um Clássico?, o poeta inglês via no latino o sumo e a síntese, o ápice e o vórtice de uma civilização — o poeta completo de um império triunfante, diria eu. As preocupações e formulações de Virgílio estavam destinadas a estender a sua perenidade e eram uma espécie de conclusão de uma civilização que o antecedera. Talvez seja útil avançar ainda um pouco nesse espelho ao avesso, e — quem sabe? — se comece a delinear um pouco mais do vulto pessoano.
Quando Virgílio mira o tempo, seja nas Bucólicas, nas Geórgicas ou na Eneida, era o conforto de um presente de glória e poder que se afigurava eterno o que se via refletir em seus versos. A glória mítica de Enéias, que foge à destruição de uma civilização para fundar outra, é pura aposta no porvir. A Eneida virgiliana, se traz o rumor ancestral das batalhas e o suor do périplo do herói, heranças, respectivamente, da Ilíada e da Odisséia homéricas, que a inspiram, mostra-se, ao mesmo tempo, como a afirmação da diferença. Ao escrevê-la sob os auspícios de Otávio Augusto, Virgílio assistia ao pleno funcionamento de uma sociedade que se queria — e era — o retrato fiel da mecânica celeste imaginada.
Quando Virgílio ensaia alguma utopia, ela tem até mesmo um caráter regressivo — bem típico de impérios cujos valores são hegemônicos —, numa espécie de volta saudosa à sociedade primitiva de agricultores (Geórgicas) e pastores (Bucólicas), embora estes já fossem cultos, refinados e quase amaneirados. Em sua trilogia, o poeta cumpriu as três palavras imaginadas para seu epitáfio (“pascua, rura, duces”): cantou os campos, o trabalho na terra e os heróis nacionais. Pessoa foi, diz-se aqui, segundo a linha eliotiana, esse Virgílio pelo avesso. Vejamos. Sua estréia crítica nas letras portuguesas se dá em abril de 1912 com um artigo para a revista A Águia, órgão de um movimento literário chamado Renascença Portuguesa. Ainda que boa parte da crítica queira ver nesse texto — A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada — não mais que a manifestação petulante e irresponsável de um jovem autor de 24 anos, nessa estréia estão resumidas algumas das preocupações que marcaram para sempre a sua obra.
Não era ainda o poeta maduro que Eliot exigia. Para Pessoa, naquele texto, a vitalidade de uma nação não está em sua riqueza comercial, mas na “exuberância de alma”, em sua capacidade de criar “novos moldes, novas idéias gerais, para o movimento civilizacional a que pertence”. Depois de algumas digressões sobre as literaturas inglesa e francesa, ele diz (como o Eliot de há pouco) que “o valor dos criadores literários corresponde ao valor criador das épocas”. E conclui: “O valor da literatura, perante a história literária, corresponde ao valor da época perante a história da civilização”.
Na seqüência, Pessoa permite-se um salto sofístico. Olha em torno e enxerga a mediocridade da sociedade e da política portuguesas, a condição deprimente de um país irrelevante na Europa, o que deveria levá-lo, pela lógica elementar, a concluir pela impossibilidade do surgimento de um grande vulto literário. Nada disso. Ao vislumbrar o que considera uma literatura de teor nacionalista, com destaques individuais que contrastam com a pequenez do país, ele supõe a antecipação de um período de glória: “Tornemos essa crença, afinal, lógica, num futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo, o cotidiano e o eterno de nós” para “criar o supra-Portugal de amanhã”. E vem a suprema heresia: “E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões”.
É claro que o autor estava atento à contradição e concede: “Pode-se objetar (…) que o atual momento político não parece de ordem a gerar gênios poéticos supremos”. Então, vem a conclusão, que, se afrontava a lógica, iria premiar a posteridade: “Mas é precisamente por isso que mais concluível se nos afigura o próximo aparecer de um supra-Camões (…). Porque a corrente literária (…) precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação (…). Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso”.
Passado como desterro
O artigo gerou barulho. Pessoa afrontava — irresponsavelmente, é fato — a santidade; não por acaso, o Virgílio português, o autor de Os Lusíadas, a Eneida lusitana, o sumo literário do período em que o país salgou os mares com as lágrimas das mães e das noivas portuguesas, o cantor da civilização onde o sol nunca se punha. O bardo e o demiurgo de um povo e seus valores triunfantes deveriam ser superados, já agora numa era decadente, por um poeta que, parafraseando o próprio Pessoa num texto sobre política, na impossibilidade de ser o resultado da vontade de todos os poetas, resumisse as qualidades de todos eles. Estava anunciado o fenômeno da heteronimia: diante da impossibilidade de um só poeta conseguir ser todos, todos em um só resultariam no supra-Camões. Se Pessoa não logrou seu intento, é certo que está sentado à direita de Deus-pai.
Se Pessoa não conseguiu navegar águas tão extensas quanto Camões — faltou-lhe o poema épico? —, o pertencer a uma era decadente certamente o fez avançar por verbos até então ignotos. É de se perguntar: a civilização moderna seria capaz de sustentar a aventura épica? Provavelmente, não. Nos fragmentos lírico-históricos de Mensagem, o poeta reconta, magnifica e lamenta o passado português segundo o ponto de vista do narrador de uma epopéia, é fato, mas cada herói é, por assim dizer, privatizado pela dor de quem olha. Camões concluiu o seu poema épico no desterro. Pessoa deu à luz seu Mensagem desterrado do tempo. A sua pátria era lugar nenhum, e a sua terra estrangeira era o passado. Muito já se falou no que há de distinto e radicalmente disforme nas várias vozes poéticas de Pessoa. Mas a questão relevante, parece, é saber como essas várias vozes se harmonizam num coro que ecoa um tempo.
Esse Virgílio da queda enfeixou nos seus heterônimos um só e mesmo sentimento de desconformidade com o mundo, que se traduz no sensacionismo modernista de Álvaro de Campos, na poesia culta de inspiração clássica de Ricardo Reis, na negação dos maneirismos poéticos de Alberto Caeiro, na recuperação do Portugal tragicamente heróico de Pessoa-ele-próprio ou na metafísica cinza, entristecida e reflexiva dos Poemas Ingleses. A dor de Pessoa é uma aventura do espírito. Mesmo o Camões mais tristemente reflexivo, que lamenta a crueza de seu destino, aquele poetizado por Bocage, que destaca num soneto não apenas seus “dons do pensamento”, mas também “os transes da ventura”, que lembra que ele teve de “arrostar o sacrílego gigante” e viver “junto ao Ganges sussurrante” — referências à atribulada e quase heróica vida do poeta em seu exílio —, mesmo esse Camões não eleva o desconforto às alturas pessoanas.
Camões fundia magnificamente suas desventuras pessoais à herança petrarquiana, ao que se poderia chamar “uma maneira de sentir”. O Pessoa de Mensagem inventou um passado — e uma forma de expressá-lo — ao qual se sente intelectualmente vinculado, mas muito mais inóspito do que qualquer terra estrangeira, porque irremediavelmente perdido. Ao recuperar, na dor, esse Eldorado onde o sol só se põe, que não é lugar, mas tempo, vaza a herança clássica (“Os Deuses vendem quando dão”), o catolicismo medieval (“Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça/ A sua santa guerra”), o limite entre o humano e o divino do Renascimento (“Deus quere, o homem sonha, a obra nasce”), a saga épica de um povo traduzida em minimalismo lírico (“Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!”).
Todos os poemas de Mensagem, a mais espetacular obra pessoana — a única publicada em vida e talvez, de fato, concluída —, podem ser resumidos no poema “A Última Nau”, em homenagem a dom Sebastião:
“Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ancia e de presago
Mystério.
(…)
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna
E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna. (…)”.
“Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ancia e de presago
Mystério.
(…)
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna
E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna. (…)”.
Os múltiplos interesses de Fernando Pessoa, que passeavam pela astrologia e pelo ocultismo, e suas preferências políticas francamente reacionárias ajudaram a consolidar a imagem do poeta sebastianista. É de se desconfiar. Desde seu primeiro texto público, o que se vê é antes um poeta com ânsia de futuro (aquele que esperava pelo “supra-Portugal”) do que saudoso do passado. A poetização de uma história tão estreitamente portuguesa e, ao mesmo tempo, tão largamente universal parece antes a rejeição de um dia-a-dia “cotidiano e tributável”, concessão, diga-se, em que se perdem muitos poetas contemporâneos. Até mesmo um Carlos Drummond de Andrade — simbolicamente, o nosso Pessoa — se deu às bobajadas jornalísticas de Versiprosa (se bem que nem ele as considerasse poesia), quando já nos tinha dado Brejo das Almas, Sentimento do Mundo e Rosa do Povo, entre outras lições de coisas e brancuras impuras.
De certo modo, nas mesmas águas ousadas navegou o futurista Álvaro de Campos, talvez o mais popular dos heterônimos pessoanos, porque supostamente mais fácil, mais inteligível. Além da adesão ao verso livre — por oposição à miscigenação formal entre clássica e medieval de Pessoa-ele-mesmo — e ao ritmo quase prosaico dos poemas, Álvaro de Campos, parece alçar às alturas uma sensibilidade destrambelhada, sem freios, que pode ser confundida com certa poesia marginal, que faz a apologia do destampatório sentimental. Mas há uma insuspeitada e exata correspondência entre o Pessoa de Mensagem e Álvaro de Campos, da qual o poema “Ode Marítima” é o exemplo perfeito.
O mar de Mensagem — de onde surge inteira e redonda a Terra — é metonímia, e o da “Ode Marítima”, metáfora; aquele afigura todas as dificuldades da civilização que foi “muito além da Taprobana”, este outro transporta uma alma sem cura; aquele existe para que, por intermédio dele, se vislumbre uma nesga de glória e se experimente o desterro no presente, este para que continue, metáfora ativa, a despertar em nós desejos de viagem, de fuga para dentro de nós mesmos, entre nossas misérias íntimas e nossos limites. No mar da metonímia, navega o vulto de dom Sebastião; no mar da metáfora, vê-se
“A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!”.
“A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!”.
Na “Saudação a Walt Whitman”, três versos dão conta da natureza futurista de que era feito Álvaro de Campos. Assim ele classifica o poeta americano:
“Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquina,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura”.
Cada um dos autores citados, de algum modo luminares do mundo das idéias, se resume num Whitman que prenuncia a democracia e suas conquistas técnicas. O futurismo de Álvaro de Campos não é do tipo que empresta às banalidades da vida moderna o estatuto de poesia ou que tenta consolidar novos cânones em detrimento de outros fundadores do pensamento que lhe é contemporâneo — alô, moderneiros de 1922 e de 1998! Álvaro de Campos extrai do moderno o perene, atualiza a idéia e o conceito na matéria viva, revela o eterno no aparentemente transitório. A saudação a Whitman, destaque-se ainda, não é acidental. O poeta americano e seu pansexualismo — “sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões” — se afiguram uma revelação feliz e bem resolvida de uma certa palpitação erótica — insatisfeita, sofrida, impotente — que se percebe em todos os poemas de Álvaro de Campos. Em seu caso, no entanto, o desejo, sem definição de gênero, como o de Whitman, parece jamais ter encontrado um lugar, um objeto em que se fixar, um corpo em que se exercer.
“Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquina,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura”.
Cada um dos autores citados, de algum modo luminares do mundo das idéias, se resume num Whitman que prenuncia a democracia e suas conquistas técnicas. O futurismo de Álvaro de Campos não é do tipo que empresta às banalidades da vida moderna o estatuto de poesia ou que tenta consolidar novos cânones em detrimento de outros fundadores do pensamento que lhe é contemporâneo — alô, moderneiros de 1922 e de 1998! Álvaro de Campos extrai do moderno o perene, atualiza a idéia e o conceito na matéria viva, revela o eterno no aparentemente transitório. A saudação a Whitman, destaque-se ainda, não é acidental. O poeta americano e seu pansexualismo — “sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões” — se afiguram uma revelação feliz e bem resolvida de uma certa palpitação erótica — insatisfeita, sofrida, impotente — que se percebe em todos os poemas de Álvaro de Campos. Em seu caso, no entanto, o desejo, sem definição de gênero, como o de Whitman, parece jamais ter encontrado um lugar, um objeto em que se fixar, um corpo em que se exercer.
É na poesia de feição pastoril de Ricardo Reis, o pagão culto, e de Alberto Caeiro, o pastor rústico, que Fernando Pessoa, aparentemente ao menos, se reconcilia com o mundo. Aparentemente. Os poemas do primeiro seguem de muito perto as odes e os epodos do latino Horácio (65-8 a.C.). Escreve o latino:
“Não queiras saber, Leocone, é um sacrilégio
Que destino os deuses a mim e a ti nos concederam”
Ao que responde Ricardo Reis:
“Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir. A dita é um jugo
E o ser feliz oprime
Porque é um certo estado. (…)”.
Horácio conclui o seu poema com um ambíguo “carpe diem, quam minima credula postero” (“aproveita o tempo e desconfia do futuro”), sem deixar claro se devemos nos entregar irresponsavelmente aos prazeres ou não perder um minuto que seja no pleno domínio de nossa própria vida. A julgar pela obra que deixou, à qual se refere no verso-divisa “Exigi monumentum aere perennius” (“Ergui um monumento mais duradouro do que o bronze”), a segunda interpretação parece fazer mais sentido. Mas Horácio era o outro poeta de uma era triunfante.
Que destino os deuses a mim e a ti nos concederam”
Ao que responde Ricardo Reis:
“Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir. A dita é um jugo
E o ser feliz oprime
Porque é um certo estado. (…)”.
Horácio conclui o seu poema com um ambíguo “carpe diem, quam minima credula postero” (“aproveita o tempo e desconfia do futuro”), sem deixar claro se devemos nos entregar irresponsavelmente aos prazeres ou não perder um minuto que seja no pleno domínio de nossa própria vida. A julgar pela obra que deixou, à qual se refere no verso-divisa “Exigi monumentum aere perennius” (“Ergui um monumento mais duradouro do que o bronze”), a segunda interpretação parece fazer mais sentido. Mas Horácio era o outro poeta de uma era triunfante.
A retomada da Antiguidade em Reis é uma busca sem esperança (jamais ele demonstra a autoconfiança horaciana) do locus amoenus (o lugar aprazível) e da aurea mediocritas (o equilíbrio de ouro, o ideal de tranqüilidade) para dar curso ao seu desalento, posto que seus temas são claramente portugueses, a saudade que sente é da mesma glória que constitui a matéria de Mensagem, a desconformidade com o mundo tem o mesmo matiz dos poemas de Álvaro de Campos, que poderia assinar, por exemplo, o fatalismo dos versos que seguem, mas não seu comedimento:
“Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino”.
“Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino”.
Caeiro é o fecho de ouro de nosso Virgílio às avessas: não se dedica à recuperação de um passado improvável, não se entrega às dores incuráveis de uma alma passível de todas as sensações, não se redime na busca estóica do equilíbrio e da medida; Caeiro simplesmente nega, ao fazê-la, a poesia. Seus versos têm um norte estético que é também uma espécie de norte moral: inutilia truncat — a busca da simplicidade. O poeta é sucinto no expressar-se, mas ainda mais no sentir. A verborragia de Campos lhe cheira a desequilíbrio; o equilíbrio de Reis, a afetação, e a afetação culta de Pessoa, a fuga da realidade natural, a única matéria da poesia para Caeiro. Não é sem certa ironia que ele se volta para ninguém menos que o próprio Virgílio:
“Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
E cantavam de amor literariamente.
(Depois — eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?)
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga”.
“Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
E cantavam de amor literariamente.
(Depois — eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?)
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga”.
Desprezava tudo o que lembrasse poesia. Não partiu Caeiro para a desconstrução do verso (jamais flertou com tolices afins…), mas fez uma poesia na contramão do fluxo influente das figuras de linguagem disponíveis, em oposição aos desejos reformadores e lamentos lacrimosos de que nenhum autor escapa (especialmente Álvaro de Campos), em contraste com qualquer utopia restauradora, de que Pessoa foi mestre. Seu refúgio é o alheamento:
“Ontem à tarde um homem das cidades
(…)
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
(…)
e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos.
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(…)
(Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu,
não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros
“Ontem à tarde um homem das cidades
(…)
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
(…)
e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos.
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(…)
(Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu,
não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros
(…)”.
Um único monossílabo, nesse poema, resume a poesia de Caeiro:
“Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até as lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
NÃO parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.”
Eis aí: para ele, a verdadeira poesia liberta a realidade da metáfora. Caeiro também era um fingidor. Mentiu ao dizer que não lera Virgílio. A IV Bucólica virgiliana, a do menino que viria para anunciar a Idade do Ouro (e que o imperador Constantino e Santo Agostinho achavam prenunciar a vinda do Messias…) — “Sem trato algum, menino, a terra te oferecerá/ Como primícia as heras que se alastram, mais o bácar (…)/ Por si, cheias de leite, as cabras voltarão ao aprisco,/ E os rebanhos não mais terão pavor dos grandes leões (…)”—, mereceu uma versão de Caeiro. Em seu poema, ele dá curso à leitura impossível de que Virgílio previu o Cristo, torna o garoto, de fato, o Menino Jesus, mas lhe dá uma feição pagã:
“(…) Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte,
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
(…)
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
(…)
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
(…)
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
(…)”.
“Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até as lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
NÃO parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.”
Eis aí: para ele, a verdadeira poesia liberta a realidade da metáfora. Caeiro também era um fingidor. Mentiu ao dizer que não lera Virgílio. A IV Bucólica virgiliana, a do menino que viria para anunciar a Idade do Ouro (e que o imperador Constantino e Santo Agostinho achavam prenunciar a vinda do Messias…) — “Sem trato algum, menino, a terra te oferecerá/ Como primícia as heras que se alastram, mais o bácar (…)/ Por si, cheias de leite, as cabras voltarão ao aprisco,/ E os rebanhos não mais terão pavor dos grandes leões (…)”—, mereceu uma versão de Caeiro. Em seu poema, ele dá curso à leitura impossível de que Virgílio previu o Cristo, torna o garoto, de fato, o Menino Jesus, mas lhe dá uma feição pagã:
“(…) Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte,
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
(…)
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
(…)
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
(…)
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
(…)”.
Há ainda muitos outros Pessoas, o dos poemas ingleses, o dos poemas dramáticos, o das poesias coligidas, e inéditos devem sair ainda do famoso baú de madeira onde ele abrigou toda a sua obra, que, a cada novidade, obriga a que se releia o que já se conhece. Portugal esperou quase quatrocentos anos, e das águas não emergiram dom Sebastião ou o supra-Camões que anunciariam a era de ouro. O país — o “rosto da Europa” a “fitar o Occidente, futuro do passado” — deu-nos, no entanto, Fernando Pessoa. Agora reintegrado à Europa, partilhando, com justiça, do quinhão de civilização que espalhou pelos quatro cantos da Terra, Portugal pode esperar outros quatrocentos anos até que um supra-Pessoa surja do azul profundo.
A eternidade não tem pressa.
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Imagens: Internet, Fotosearch