Na primeira parte do conto Tankamirés acompanhado do amigo Ankhetamon, partem em busca de uma solução eficiente para combater a enfermidade da sua amada Minakhasis, apostando nas habilidades do ermitão Shorubhak.
...Já era noite quando o velho eremita explicou a respeito do preparado que iria entregar a eles e da meneira como seria ministrado. A partir daí, estariam prontos para o retorno levando em mãos um frasco contendo uma poção que poderia salvar a vida da amada. O ermitão adiantou que se o remédio não proporcionasse a cura total pelo menos adiaria por um tempo o estágio definitivo e deplorável da enferma, diminuindo a dor e o sofrimento. Enquanto isto, novos preparados ele se encarregaria de providenciar, sem, contudo alimentar qualquer expectativa de cura. Sabia da gravidade do problema pois conhecia muito bem aqueles sintomas, tantas vezes presenciados em outras pessoas há quem um dia servira, oferecendo-lhes os seus préstimos.
De repente interrompeu a conversa dizendo: - Vocês me fizeram lembrar de quando aqui cheguei.
- Ao fazer a escolha de morar sozinho, depois de ter viajado por lugares nunca antes imaginados; conhecido pessoas de diversas origens, etnias, gostos, aparências e poder, mesmo assim achei que não sentia solidão. Pouco eu sabia que já era uma pessoa solitária. Viajava em busca de algo que não conseguia encontrar. Depois de muito procurar, descobri que estava em busca de mim mesmo. Observando as pessoas que encontrava pelo caminho, sem perceber tentava me enxergar. - Disse o velho falando sobre reminiscências.
- Depois de alguns meses que havia me instalado entre estas rochas, percebi que um pássaro todas as manhãs me visitava. Pousava naquela pedra preta - apontou uma pequena elevação rochosa próxima de onde se encontravam -, por incrível que pareça contrastava perfeitamente com sua plumagem branca. Aos poucos fui conquistando sua confiança atirando-lhe migalhas de comida. Ele continuou agindo da mesma maneira. Todo dia podia contar com sua visita. - O velho falava com expressão de admiração.
- Certa vez enquanto o alimentava com as migalhas que lhe atirava, despercebido comecei a assobiar uma música antiga, dos meus tempos de infância, muito bonita e uma das poucas que conhecia. O pássaro alimentou-se e foi se embora. No dia seguinte ele voltou e enquanto lhe oferecia o seu alimento habitual para minha surpresa ele começou a trinar o seu canto melodioso a canção que assobiava no dia anterior. Não conseguiu cantá-la toda, mas já havia aprendido a soltar sua voz pelo menos por pouco tempo. Havia dado suas primeiras entoações. Imaginei o quanto ele deveria ter ensaiado pra me mostrar o que aprendera.
- Continuamos a nos encontrar no mesmo horário e a cada dia ele cantava um pouco mais, até que um dia ele apareceu, cantou três vezes aquela nossa canção linda, cheia de emoção, voou e nunca mais voltou. Até hoje deixo migalhas para ele, sem receber a graça da sua visita. Imagino que talvez tenha sido vitima de um caçador inescrupuloso; estaria preso em alguma cela alimentando o egoísmo de algum indivíduo que queira o seu canto só pra ele; ou ter considerado que havia aprendido o suficiente e não precisaria mais do amigo que ele cativou apenas com sua simplicidade e cordialidade. - Disse o velho agora deixando fluir sua emoção.
- Vou continuar esperando-o, pois, em todo esse tempo de convivência o ensinei a cantar, mas não disse que também tinha me ensinado o quanto era importante para mim. Concluí que havia me fechado para ele, enquanto deveria ter dado a chance de conhecer-me melhor e ter agido ao contrário. Ter externado a felicidade que proporcionava com sua visita, afinal, ele também parecia tão solitário quanto eu. Ter dito que era o meu amigo das manhãs e que me trazia gratidão, porque fazia esperá-lo na manhã seguinte antes do sol mostrar o seu sorriso, e depois poderia vê-lo voar livre para o seu mundo de descobertas.
- Hoje eu penso que aquele pássaro que tanto demonstrou companheirismo sem pedir nada em troca, apenas às migalhas que lhe oferecia por prazer pessoal, agora está fazendo com outra pessoa o mesmo que fez comigo. Ensinando-lhe a ter paciência, esperança e acreditar que enquanto esperamos um novo dia, uma nova vida renasce, um novo sol irá brilhar e o ar de ontem não é o mesmo que respiramos hoje, embora o oxigênio seja semelhante. - O velho respirou em fortes haustos e continuou o seu raciocínio explicando melhor sua metáfora.
- Sua noiva está experimentando essa mesma experiência, ela já cantou ao seu ouvido e encantou o seu coração. Agora vai voar em busca de um novo aprendizado, porém, livre e distante do cárcere da dor e do sofrimento do corpo. Mas vai deixar uma luz no seu caminho, uma recordação angelical no seu pensamento; o reconhecimento de que cada passo que der, estará conquistando uma nova leitura da vida e deixando para trás pegadas consistentes e fundamentadas. - Disse o ancião de maneira contemplativa e filosófica.
- O mal que sua noiva experimenta não tem cura perante a medicina dos homens. O seu organismo está sendo dilacerado rapidamente e a vida esvaindo-se a um agitar do vento em tormentas; volta pra junto dela e diga o necessário. Diga o quanto ela representa pra você e não faça como eu, que deixei de dizer para o meu amigo pássaro da sua importância. Nem nome eu lhe dei para selar com mais intensidade nossa amizade. Diga ainda, que pela primeira vez algo importante brotou na sua vida, e que ela o ensiou a dar os seus primeiros passos projetando perspectivas alentadoras. - Elegantemente e de maneira virtuosa o velho concluiu suas considerações enobrecedoras.
Após aquele relato, e de terem ouvido extasiados a história, os amigos perceberam que o velho eremita tinha doçura na alma. Vivia no seu mundo de reclusão existencial, porém carregava no bojo de seus conhecimentos, ensinamentos ricos de exemplos nobre e valor a vida. E que depois de todas essas observações, percebia-se que realmente Manakhasis havia restaurado o sentido da vida no coração de Tankamirés.
Continuaram conversando por um longo tempo, depois foram dormir. Iriam partir antes do alvorecer e a caminhada seria longa e cansativa. Lutavam contra o tempo e uma doença impiedosa. O velho e agora amigo, depois de todo esse tempo pronunciou o seu nome Shorubhak, em seguida colocou-se à disposição de ajudá-los no que fosse necessário dentro de suas limitações, continuaria pesquisando alternativas no sentido de encontrar uma poção milagrosa para combater o mal que acometera a jovem. E que na verdade se tratava de um câncer abdominal que se espalhava de forma vertinosa pelo interior do seu corpo destruindo todas as resistências que encontrava pela frente.
Tankamirés contou-lhe suas intenções de perpetuar o corpo da amada pelo processo da mumificação e que sabia não ser fácil. Não conhecia as técnicas e ainda teria que fazer os procedimentos às escondidas para sua atitude não ser considerada como uma heresia ao culto religioso da cultura do seu povo. Somente os sacerdotes poderiam exercer, ou supervisionar aquela função, assim como, iniciativas medicamentosas. Depois teria ainda que convencer a família muito arraigada ao culto a Aton, o disco solar, e ao faraó que se nomeou com o título de legítimo representante da divindade poderia ser digno de adoração, portanto, as dificuldades se faziam presentes e a princípio difíceis de se transpor.
Partiram relativamente confiantes. Se não conseguissem a cura pelo menos retardariam a corrida acelerada da doença rumo à morte. Tankamirés entregou a poção à família e ensinou-lhes todas as recomendações necessárias para sua aplicação. Outra batalha teria que enfrentar: pesquisar os procedimentos da mumificação e a confecção do esquife (sarcófago) onde o corpo seria colocado para sua morada eterna, ou até quando a ressurreição fosse estabelecida. Crença alvissareira do povo agípcio quanto aos caminhos da alma, do espirito.
Em nenhum momento os amigos se afastaram dos seus propósitos, atitude que alicerçaria ainda mais o vínculo de amizade entre os dois. Assim o tempo foi passando até que chegou o fatídico momento que tanto temiam. Manakhasis veio a falecer. O remédio que tomou protelou a fim antes imediato, sem deformar sua aparência jovem e bela. Quem a visse nem perceberia que sua enfermidade fosse tão severa e destruidora. Tankamirés e o amigo Ankhetamon com dificuldade conseguiram junto aos familiares romper a barreira que os impedia fazer a perpetuação do corpo.
Uma vez concluído os detalhes dos procedimentos a serem tomados deveriam manter a cirurgia com extremo cuidado. Para tanto estabeleceu-se um tipo de juramento inviolável de que somente eles saberiam e deveriam guardar o segredo, sob a infelicidade de cair no conhecimento da população, depois chegar até aos sacerdotes e por fim ao faraó que exerciam o poder sobre a vida e a morte. Todos os envolvios correriam esses riscos evitando com isto a pena de morte por heresia.
O enterro seria forjado. Com os devidos cuidados antes do cortejo fúnebre o corpo deveria ser substituído por um boneco de pano moldado em resina com as características da falecida elaborado com perfeição pelas mãos de um artista. Todo esquema havia sido estudado e desenvolvido no mais absoluto segredo. O verdadeiro iria ser levado para um lugar seguro devidamente planejado e preparado para os procedimentos da mumificação. Haviam buscado o velho Shorubhak que muito os ajudariam na consecução da cirurgia, dado aos seus amplos conhecimentos de medicina natural, baseados nos seus preparados especiais. Era conhecedor de elementos químicos que não alteraria a cor da pele, com fórmula exclusiva e secretamente mantida, além de incensos, perfumes e fluídos de assências aromáticas. Como bens pessoais ela não possuía camafeus, jóias e pedras preciosas além de sua beleza natural irretocável. O velho ermitão havia também escolhido o lugar apropriado para esconder o sarcófago que somente ele e Tankamirés saberiam.
Como estava velho, após sua morte apenas o jovem ficaria com o segredo, seria a sua "caixa de pandora". O lugar escolhido para a câmara mortuária ficava num penhasco rochoso situado a pouca distância de onde morava. Era bonito e de difícil acesso. Antes de se chegar até ao local, teria que superar um pequeno pântano infestado pelos temíveis crocodilos do Nilo, que reforçaria a segurança, garantindo a confiabilidade de impedir possível violação e saque. O lugar era perfeito, recebia privilegiadamente o frescor da aragem do rio sagrado; ambiente verdejante e florido, berço de lindas borboletas primaveris. A flora e a fauna eram exuberantes, lugar mais primoroso seria quase impossível. O experiente Shorubhak havia pensado em tudo nos mínimos detalhes. Parecia que estava cuidando da segurança dos despojos de uma filha, que não conhecera.
Ilustrações: Neli Vieira
(Continua em breve a última parte...)