Está ai outra carona que o
Bússola Literária não poderia deixar de pegar com a revista Bula, porém fácil
de ser explicada: os meios justificam o fim. Justamente para não privar os seguidores
deste blog, de terem acesso a este fascinante comentário do jornalista e
crítico literário Nei Duclós, para a coluna Livros da conceituada revista
online.
Não são os vestígios que
importam, mas suas fontes humanas. A arqueologia não deveria se ocupar das ruínas, mas do esplendor das mãos anterior a elas. Isso poderia tirar do estudo
do passado remoto sua roupagem funerária, sua obsessão por túmulos, suas
descobertas que se transforam em museus suntuosos. Descobrir um gesto numa
fogueira extinta é mais importante do que ver imobilizado um trono de ouro
acompanhando múmias.
A função civilizatória da
arqueologia não é o deslumbramento provocado pela precocidade dos ancestrais,
mas enxergar o que qualquer civilização esconde quando for comparada ao
verdadeiro enigma, a natureza. O que faz o projeto esquecido de uma pirâmide no
alto da montanha? Qual o sentido de uma cidade industrial americana colocada ao
lado do Grand Canyon? Esses eventos poderão revelar toda a fuligem,
precariedade, escândalo e horror que acompanham a modernidade?
É disso que se ocupa Henry
Miller no seu clássico livro de viagens, Pesadelo
Refrigerado, um trabalho arqueológico que despreza os vestígios, a não ser
que sirvam para provar sua tese sobre a sujeira da América. Ao detectar a
origem do pesadelo – o divórcio entre homem e a natureza no país que despreza a
arte e a cultura – ele vai atrás do tesouro verdadeiro oculto a quilômetros
abaixo das aparências? Os gênios, anônimos ou simplesmente desprezados e
perseguidos, que fazem a grandeza da sua época e que passam despercebidos pela
brutalidade de uma nação que aposta nas vantagens da guerra. Esta, já estava
desencadeada na Europa na época em que foi escrito o livro, mas ainda não havia
o engajamento, vislumbrado com iminente, do governo Roosevelt, em 1941.
Miller costuma aceitar porque
não faz concessões, como comprovam algumas frases ciscadas, e colocadas aqui em
sequência, para destacar a contundência de suas análises e profecias sobre o
seu percurso pelo país que o assusta o tempo todo: “Neste mundo, o poeta é
anátema, o pensador um tolo, o artista um alienado, o homem de visão um criminoso.
O pior sofrimento é o que se encontra no próprio coração do progresso. Todo o
mundo se transformou em um campo armado. Vamos aprender a aniquilar o planeta
inteiro num piscar de olhos, espere só pra ver”.
Diante do pesadelo, que é o
país deserto e insuportável, os gênios pontuam a trajetória do autor
envolvendo-o em passeios, conversas, evidências. Inspirado nas palavras de
Swamii Vivekananda, o primeiro grande difusor das ideias espirituais da Índia
no Ocidente e que fez grande sucesso na virada do século 19 para o 20. Miller
aposta nas mentes ocultas, naquelas criaturas que transformam o mundo e jamais
vêm à tona, ou quando são vistas, todos fingem não enxergá-las.
Assim, convivem no esmo espaço
de revelações profundas tanto o morador do deserto, homem simples e isolado,
que ensina os arqueólogos sobre os verdadeiros motivos de uma tragédia ocorrida
milhares de anos antes, quanto pintores considerados fundamentais, como John
Marin e Marion Souchon. Revolucionários do som ordenado que mudaram radicalmente
a percepção da música, como Edgar Varèse, são vistos com a mesma grandeza de um
velho mecânico que fez o Buick do autor cruzar infinitos espaços sufocados por
altas temperaturas.
Não se trata, entretanto, de um
livro de viagens exótico ou “esnobe”, como dele disseram na imprensa
brasileira. Por ser radical, por colocar os gênios como milagres que desafiam
uma cultura autodestrutiva, Miller provoca o desconforto habitual da fornalha
da sua escrita. O leitor não faz uma viagem agradável pelas paisagens físicas e
humanas de uma América deslumbrante e aterradora. Não se trata de um livro para
confirmar a hegemonia de algo irreversível ou para entreter quem quer que seja.
É obra de arte, no que isso tem de mais provocador e gratificante. Mesmo
escrito há mais de 60 anos, serve para gerar uma nova visão do país que emergiu
da guerra como se fosse o paradigma de uma civilização futurista e nada mais é,
segundo o próprio Miller, do que o final de um processo que está destinado a
desaparecer fruto de suas próprias contradições.
“O estilo americano é seduzir o
homem por meio da propina até torná-lo um prostituto”, diz Miller, para não
deixar dúvidas sobre o pseudocharme da civilização hoje vitoriosa no mundo. Ao
ser lido depois que todas as suas suspeitas e certezas sobre o que via se
confirmaram, principalmente na invasão do Iraque, Henry Miller, com Pesadelo Refrigerado, encerra o melhor
das profecias, que são as percepções colhidas no início dos acontecimentos,
quando estes se encontram em estado quase latente em relação ao que poderão
desenvolver. A América prestes a entrar na guerra intensificaria todos os seus
erros e disseminaria pelo mundo a adoração pelo dinheiro. Isso incomodava na
época e hoje é mais atual do que nunca.
A guerra faria a civilização
americana chegar ao auge, mas a França, na época sob o tacão nazista, não seria
destruída, segundo Miller. A França é o contraponto ao pesadelo refrigerado e
seu modelo são os anos 1930, quando Miller rodou por Paris e produziu suas
grandes obras, como Trópico de Câncer.
A viagem pelo país dilacerado provocava, nos detalhes, como ensinava Proust, um
retorno às raízes da emoção do autor, fundamente fincadas nas paragens
francesas. Suas madeleines – o doce que desencadeia a memória afetiva em Proust
– em Miller são os detalhes de um passeio, uma conversa aleatória.
O que mais encanta no livro é a
aguda visão do escritor dos lugares por onde anda sem os óculos do turista
inconsequente. Debocha dos comentários vazios dos que precisam devorar a
paisagem, amparados pela incultura onívora e chama a atenção para o chão,
púrpura hospedaria onde uma turista entediada reclamava do crepúsculo, suave
demais para quem precisava enxergar o sol como se fosse uma gigantesca omelete.
Literatura de combate sem ser
de guerra, este é um livro que escancara a individualidade necessária nesta
época em que tudo se parece, como se estivéssemos numa viagem tediosa por
lugares famosos. O que é sagrado para Miller é essa abordagem única de um
espírito livre, que, por sua altivez e profundidade, nos ensina mais do que nos
deleita, e nos estoca para uma vida mais sincera e habitada. Sua arqueologia
atinge o coração das trevas e de lá retira algo que está vivo e não se deixa
morrer, mesmo que a guerra pareça interminável.
Trecho do livro Pesadelo
Refrigerado de Henry Miller
– Se eu fosse você não deixaria,
por nada, de ler este trecho do livro, que mais parece um documento testemunhando
o compreensivo sob o incompreensivo.
Foi num hotel em Pittsburgh que
terminei de ler o livro de Romain Rolland sobre Ramakrishna. Pittsburgh e
Ramakrishna – pode haver contraste mais violento? Um é o símbolo do poder e da
riqueza brutais, o outro, a própria encarnação do amor e da sabedoria.
Começamos aqui, então, o
rapidíssimo pesadelo, a cruz em que todos os valores são reduzidos a lixo.
Estou em um quarto pequeno, que
deve ser considerado confortável, de um hotel moderno equipado com todas as
últimas comodidades. A cama é limpa e macia, o chuveiro funciona perfeitamente,
o assento da privada foi até esterilizado depois do último hóspede, se é que se
pode acreditar no que diz a tira de papel que o envolve; sabonete, toalhas,
luz, papel de carta, tudo fornecido em abundância.
Estou deprimido, mais deprimido
do que consigo expressar. Se fosse ocupar este quarto por um tempo considerável,
ficaria louco ou cometeria suicídio. O espírito do lugar, o espírito dos homens
que fizeram desta cidade o horror que ela é, penetra pelas paredes. Existe
assassinato no ar. Tudo me sufoca.
Há poucos instantes saí para respirar
um pouco. Senti-me de volta à Rússia czarista. Vi Ivã, o Terrível, seguido por
uma turba de brutos de focinho. Lá estavam armados com porretes e revólveres.
Tinham o ar de homens que obedecem zelosamente, que atiram para matar à menor
provocação. Nunca o status quo me
pareceu mais horrendo. Este não é o pior lugar de todos, eu sei. Mas estou
aqui, e o que vejo me atinge com força.
Talvez tenha tido sorte de
começar meu tour da América via Pittsburgh, Youngstown, Detroit; sorte de não
ter começado por Bayonne, Tethlehem, Scranton e que tais. Podia não chegar
nunca a Chicago. Podia ter me transformado em uma bomba humana e explodido.
Algum astuto instinto de autopreservação me levou a virar para o sul primeiro,
a explorar os estados da União chamados de “retrógrados”. Posso ter me
entendiado a maior parte do tempo, mas pelo menos tinha paz. Será que não vi
sofrimento e miséria no Sul também? Claro que vi. Existe sofrimento e miséria
por toda parte neste vasto país. Mas há tipos e graus de sofrimento; o pior, em
minha opinião, é o tipo que se encontra no próprio coração do progresso.
Neste momento, falamos da
defesa de nosso país, das instituições, de nosso modo de vida. Tomamos como
certo que essas coisas precisam ser defendidas, sejamos ou não invadidos. Mas
existem coisas que não deviam ser defendidas, deviam ser deixadas para morrer;
existem coisas que devíamos destruir voluntariamente, com as próprias mãos.
Vamos fazer uma recapitulação
imaginária. Tentamos pensar nos velhos dias em que nossos patriarcas chegaram a
estas terras. Para começar, com certeza fugiam de alguma coisa; como os
exilados e expatriados que estamos acostumados a denegrir e aviltar, também
eles abandonaram sua terra natal em busca de algo mais próximo dos desejos de
seu coração.
Uma das coisas mais curiosas
sobre esses antepassados é que, embora estivessem manifestamente buscando paz e
felicidade, liberdade religiosa e política, eles começaram roubando,
envenenando, assassinando, quase exterminando a raça a que pertencia este vasto
continente. Mais tarde, quando principiou a corrida do ouro, fizeram com os
mexicanos a mesma coisa que haviam feito com os indígenas. E, quando os mórmons
surgiram, praticaram as mesmas crueldades, a mesma intolerância e perseguição
dos seus próprios irmãos brancos.
Penso nesses feios fatos
porque, enquanto estava indo de Pittsburgh para Youngstown, atravessando um
inferno que vai além de qualquer coisa imaginada por Dante, subitamente me veio
à ideia de que precisava ter um indígena americano ao meu lado, de que ele
devia participar desta viagem comigo, comunicar-me, em silêncio ou de alguma
outra forma, suas emoções e reflexões. Minha preferência seria ter comigo um
descendente de uma das tribos comprovadamente “civilizadas”, um seminole, vamos
dizer, que houvesse passado a vida nos intricados pântanos da Flórida.
Imagine nós dois parados em
contemplação diante da horrenda grandeza de uma dessas siderúrgicas que
pontilham a ferrovia. Dá quase para ouvi-lo pensando: “Então foi para isso que
nos privaram de nossos direitos de nascimento, levaram nossos escravos,
queimaram nossas casas, massacraram nossas mulheres e crianças, envenenaram
nossas almas, romperam cada tratado que fizeram conosco e nos deixaram a morrer
nos pântanos e selvas dos Everglades!”
Você acha que seria fácil
fazê-lo trocar de lugar com um de nossos trabalhadores regulares? Que tipo de
persuasão seria preciso utilizar? O que se poderia prometer a ele que fosse
realmente sedutor? Um carro usado para ir trabalhar? Um barraco de tábuas que
pudesse, se fosse ignorante a tal ponto, chamar de casa? Uma educação para seus
filhos que os tirasse do vício, da ignorância e da superstição, mas ainda os
mantivesse em escravidão? Uma vida limpa, saudável, em meio à pobreza, ao
crime, à sujeira, à doença e ao medo? Salários mal suficientes para manter a
cabeça fora da água e muitas vezes nem para isso? Rádio, telefone, cinema,
jornais, revistas vagabundas, canetas-tinteiro, relógio de pulso, aspiradores
de pó e outros aparelhos ad infinitum?
São essas bobagens que fazem a vida valer a pena? São essas coisas que nos
deixam felizes, relaxados, generosos, compassivos, gentis, pacíficos e tementes
a Deus? Estamos prósperos e seguros hoje, como tantos estupidamente sonham
estar? Algum de nós, mesmo os mais ricos e poderosos, tem certeza de que nenhum
vento contrário arrebatará nossas posses, nossa autoridade, o medo e o respeito
que nos são votados?
Essa atividade frenética que
nos mantém a todos, ricos e pobres, fracos e poderosos, em suas garras – aonde
está nos levando? Ao que me parece, existem duas coisas na vida que todos os
homens desejam e poucos obtêm (porque ambas pertencem ao domínio do espírito):
a riqueza e a liberdade. O farmacêutico, o médico, o cirurgião são incapazes de
nos dar saúde; e dinheiro, poder, segurança, autoridade não fornecem liberdade.
A educação nunca provê sabedoria, nem as igrejas religião, nem a riqueza a
felicidade, nem a segurança a paz. Qual é então o sentido de nossa atividade?
Qual a finalidade disso tudo?
Somos não apenas tão
ignorantes, supersticiosos, perversos em nossa conduta quanto os “selvagens
ignorantes e sanguinários” que espoliamos e aniquilamos ao chegar aqui – somos muito
piores que eles. Nós degeneramos; degradamos a vida que procuramos estabelecer
neste continente. A nação mais produtiva do mundo, porém inapta para alimentar,
vestir e abrigar adequadamente mais de um terço de sua população.
Vastas áreas de solo valioso
são transformadas em deserto por negligência, indiferença, ganância e
vandalismo. Dilaceradas há oitenta anos pela guerra civil mais sangrenta da
história do homem, até hoje é incapaz de convencer o lado derrotado do país
sobre a correção de nossa causa; incapaz, como libertadora e emancipadora de
escravos, de lhes dar verdadeira liberdade e igualdade, ao contrário,
escravizando e degradando nossos próprios irmãos brancos. Sim, o norte
industrial derrotou o sul aristocrático – os frutos dessa vitória são agora
visíveis. Onde quer que haja indústria existe feiura, miséria, opressão,
tristeza e desespero.
Imagens: Internet.