domingo, 24 de novembro de 2013

O Homem Só

 
A realidade é uma verdade que não permite erros. Quando estes ocorrem o preço é muito alto a se pagar. Porém, entre centenas de seres que transitam na imensidão do desconhecido, ou mesmo das descobertas. Às vezes, os levam a conhecer o improvável. Inicia-se aí, sua luta ferrenha para sobreviver. Tanto no aspecto moral como útil. De ter uma vida digna. Ser amado e respeitado por seus familiares e amigos. Ou então se amargar na contramão da escabrosa sobrevivência no mundo da ilusão, da surreal floresta do esquecimento. Subtraído do convívio social em consequência de um dilúvio mental.

Nome - o seu nome - deixará de ter significado até para o Censo Demográfico. Sua existência passa a não ter sentido, nem através da sombra. Porque, o sol deixou de brilhar sobre os seus ombros há muito tempo. Nada resta senão, repetir um ritual diário, sem sentido algum para continuar vivendo. Pelo menos, aquele em que está deparando frente a frete e tendo de suportá-lo, apenas para concluir seu designo de existir.

As clínicas de doentes mentais, de drogados, de recuperação da autoestima e aconselhamento na busca de uma vida melhor e mais saudável, estufam os bolsos dos seus responsáveis, sem uma resposta plausível e iluminada, capaz de modificar esse quadro triste, embora muito verdadeiro.

Enquanto, a venda que cega a sociedade, principalmente em relação ao descaso existente nos meios capazes de fazer algo notável e louvável, ou pelo menos tentar encontrar uma solução humana para o problema no sentido mais amplo, não passa de pura utopia.

Bússola Literária, através de um bem focado Conto: “O Homem Só”, de Renata Rothstein, nossa amiga do Facebook. Analisa o assunto, nos dando a dimensão do abandono em que uma pessoa, esquecida à própria sorte. Distante de si mesma, é obrigada a se submeter a mais absurda renúncia, esquecido até da sua origem. Sobrevivendo apenas de vagas lembranças que ainda se movimentam pelo cérebro ignoto, remoendo anos de total orfandade.

Neste Conto, que mais parece um monólogo ditado por um anjo da guarda, desvenda a tristeza de uma pessoa que convive com o seu anonimato absoluto, e ainda assim, alimenta uma possível esperança, que há de iluminar o fim das incerteza.

Recomendo sua leitura, porque sei que um dia, ouviu contar um fato semelhante, ou até mesmo, presenciou por se encontrar próximo desta inóspita e insólita realidade. Boa leitura. Caso achar conveniente, seu comentário será muito bem-vindo e motivador. Vamos lá...


O Homem Só


Era um homem só. Apenas um solitário homem cansado. De tanto pensar, pesar os prós - Que prós? - e os contras, pesar os pesares e pesar a vida, esqueceu que havia um passado. Outra vida, que tinha vivido. Que tinha, enfim, desabado, desabafado, acabado. Passado (?). 

Despercebido anos no vício - que não era vício, no singular, era pluralíssimo - como ele, como a chuva, como o deserto. Tal e qual as pessoas ditas normais, que corriam lá fora. “Atrás do que e para onde?” Ele se perguntava, ignorando que nem elas saberiam a resposta. Mas, não estavam nem aí, para falar a verdade.

Verdade, uma mentira. Desperto em si, deserdado de si, entediado como um poodle rosa, de madame com cabelo a caju, ele só esperava a noite, a liberdade, a rua e o céu, o seu belo telhado. Ao menos era o que quase sempre escolhia. O que lhe acolhia, ou o que era obrigado a recebê-lo, quando era expulso, aos bofetões, por algum senhor zelador da ordem. Irritado porque especialmente naquele dia, ele não estava - para variar - no seu juízo perfeito.

O fato é que em um triste dia, este mesmo homem imperfeito saiu, sem destino e com pressa. E rua afora procurava louco e irreconhecível, na sua desconhecida apagada saudade, um sonho, do qual achava, havia participado.

Mas as ruas surgiam, uma após outra, esquinas sem nome escondendo lembranças e recordando nomes que o homem não queria saber, mas que teimavam em soprar-lhe nos ouvidos, sempre atentos às vozes que não existiam: "mamãe... Lucélia. João, o meu pai. Hélio, o Helinho, meu amigo de infância. Isaura..." Sobressaltava-se, ao ouvir a voz inexistente, tão sua conhecida, sussurrar esse nome.

Isaura Gomes, a mulher dos seus sonhos reais, quase palpáveis, naqueles instantes de lembrança. Isaura, seu único, grande e definitivo amor. Aquela que fora capaz de levá-lo ao céu e entregá-lo ao inferno, sem data para retornar e buscá-lo.

Lembrava-se mesmo vagamente dos cabelos pretos e ondulados, da voz quase irritante, do semblante selvagem de quem lutou muito para chegar até ali. E não podia perder tempo com um louco.

Louco! Louco! Louco! Louc... A voz... Agora, ria-se dele e homem só, que, aliás, atendia pelo nome de Armando. Apertava a cabeça com as costas das mãos, como  algum tipo de feitiço para afastar as vozes.

Acalmou-se, e, como um carro se afastando na estrada e sumir no horizonte, lembrou. Uma lembrança que era quase uma intuição, daquelas que nem se sabe se é lembrança, sonho, viagem. Lembrou...

Amara Isaura. Amara... Será mesmo que amara? Ou era o amor uma farsa, um pretexto para acabar. Desafiar e levá-lo ao fundo do poço de uma vez por todas. Tudo aquilo, ele fazia enorme esforço por acreditar.

A cabeça de Armando nessa hora era só metade. Aberta para enxergar todos os dissabores da vida - que ironia, chamar "isso" de vida. Nos poucos momentos de paz; nos menos que eram muito, muito mais...

Dormiu, ao relento. O vento espalhando um resto de pensamentos e um varredor invisível de sonhos juntando tudo num canto, apontando e dizendo: "Aí os teus sonhos, meu chapa. Se quiser pode pegar. Eu não pegaria..." Foi o conselho. Armando seguiu, achou melhor.

E irrefletidamente durante anos, esse resto de homem perdeu tempo. Do tempo que ele não tinha. Esgotando-se no desperdício indecente, inclemente, como gota d'água fugindo do oceano, cantando a delícia de partir, com a missão cumprida. Já não importava a sorte, a morte, uma promessa ou uma missão mal resolvida.

No sanatório só deram falta de Armando no quarto dia, procuraram mais três... Fecharam a semana: sete dias. Sete, este é um número cabalístico. Esqueceram de vez de Armando. O homem solitário de terno surrado e passado desconhecido, que - diziam - estava mesmo irremediavelmente perdido, desde que aparecera por ali, trazido por um serviço de recolhimento de moradores de rua.

Durante muitos anos essa foi a sua única, úmida e tangível falta de sorte.

O adeus, o corte, o misterioso sumiço daquele insensato homem que, embora desaparecido da visão de todos, continuava existindo, pensando, sumindo e morrendo. Em algum canto da via de estrelas, lá fora. Ou dentro, no seu mundo, hoje perdido. Um passatempo de acordar e dormir, viver, sem jamais ser.

Como tantos Armandos, fingindo... Fugindo e morrendo. Continuando, vivendo.

Uma noite o homem só fechou os olhos e acordou com uma voz, quase irritante, chamando baixinho seu nome: “- Armando...!"  Abriu os olhos e viu os cabelos negros... O semblante, agora bem mais suave. Era Isaura. 

Estendeu-lhe as mãos de dedos finos e ele se levantou. Não perguntou nada, só obedeceu.

Gotas de chuva transparente e que não molhavam (estranho) caíam sobre ele. Sentiu-se, simplesmente, parte de tudo o que não compreendia. Partiu rumo à rua, rumo ao céu. A liberdade, enfim...


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Imagens ilustrativas: Google image