quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Gari, limpando o caminho do incompreensivo



Desde a era primitiva que o homem sentiu a necessidade de viver em sociedade; construir família e cria um ambiente seguro para morar. Utilizando-se de instrumentos rústicos faziam os seus roçados, limpavam o terreno escolhido, onde a terra poderia render bons resultados e, a caça e a água fossem abundantes. Eram detalhes que garantiriam suas sobrevivências.

Com o transcorrer dos tempos, cuidados com os problemas de higiene, tanto pessoal, quanto ambiental, tornaram-se necessários. A preservação da saúde passou a ser considerada imprescindível, e, dependiam desses elementos básicos, para mantê-la menos vulnerável.

Evidente que, para manter suas moradas limpas, criaram conceitos elementares, que até hoje são fundamentais e só depende de cada um, para torná-los eficientes e livres de impurezas. Evitando a propagação de insetos e outros animais ambientados com o lixo, como: ratos, baratas e outros micros organismos nocivos à saúde. Tais conceitos criaram forma e robustez, a partir do imperativo de manter não somente as casas higienizadas, mas também, as via pública.

Como no começo nada é fácil, principalmente, no que se refere à concentração acelerada do crescimento das cidades e suas populações. Seja com o trato da sua formação cultural, na maioria das vezes formadas por indivíduos com os mais diversos estágios de princípios. Ou até mesmo, com os cuidados de ordem educacional familiar e social. Essa heterogenia transformou-se num problema sério de saúde pública a ser resolvido. Algo deveria ser feito com urgência, antes que o caos fosse instalado de forma nefasta.

As pessoas já haviam adquirido o hábito de jogar os seus lixos domésticos nos logradouros públicos, praças e ruas. Da mesma forma, se repetia, nas áreas particulares baldias, sem a devida conservação – comum até hoje. Estes eram os ambientes propícios para o despejo de dejetos e naturalmente, excelentes proliferadores e habitats perfeitos, desses elementos característicos da sujeira e do abandono. Onde o mato, o entulho e outras impurezas desovadas, sem nenhum critério de higiene, comprometiam a saúde dos córregos, rios, mangues e praias, causas muito comum do progresso desordenado.

Foi ainda, durante o Império que o francês Pedro Aleixo Gari, radicado no Brasil, vendo a situação, resolveu tirar proveito da situação, como meio de negócio. Certamente um visionário, com antecedentes do velho continente. Para tanto, apresentou uma proposta de higiene pública ao poder constituído na época, de manter a cidade do Rio de Janeiro, limpa. Uma vez, aprovada a proposta, pela Corte, as partes envolvidas, assinaram um contrato de limpeza urbana.

Outro fator, próprio das desigualdades sociais, contribuiu com os interesses de Pedro Gari: a mão de obra barata. O desemprego alcançava índices alarmantes, sendo os negros, a sua grande maioria. Sua primeira iniciativa foi reunir um grupo de desempregados e oferecer esta nova modalidade de trabalho, como funcionários remunerados, coisa incomum até então.

Na época cavalos, cães, galinhas, porcos, circulavam livremente pelas ruas. Então, essa nova classe de trabalhadores passou a recolher seus excrementos, que se espalhavam sem controle algum, nas vias públicas. Além, é claro, do lixo doméstico, impurezas dos banheiros corriam pelas ruas sem nenhum rigor de controle, jogado a céu aberto, nos mais diversos lugares.
A princípio, não foi uma tarefa fácil, os trabalhadores eram ridicularizados, mas, a necessidade falou mais alta, e, logo, passaram a ter importância, mesmo com restrições.

Com o passar do tempo a atividade, mantendo-se fiel à sua proposta de manter a cidade mais saudável, os próprios habitantes do Rio de Janeiro, começaram a associar os trabalhadores da higiene pública, ao nome de Aleixo Gari, Passando assim, a serem reconhecidos como a “A turma do Gari”. Daí surgiu o nome desses profissionais de limpeza urbana.

Outro exemplo, digno de destaque, e na época, mereceu atenção especial, aconteceu em 1899, quando o médico sanitarista Osvaldo Cruz, ao lado de Vital Brasil e Adolfo Lutz, foram convidados para estudar a combater com a peste, que destruía a população de Santos. Os estudos confirmaram tratar-se da Peste Bubônica ou Peste Negra, provocada principalmente, pela pulga do rato. E, também, das suas fezes e urinas como causadoras de outras doenças infecto-contagiosas, que poderiam causar inclusive, a morte. O que, já vinha ocorrendo.

Através da fantástica evolução da modernidade e, o poder da industrialização, uma nova era transformadora, se fez presente. Contudo, pouco praticada, sob todos os níveis: a reciclagem. Mas a odisseia dos garis continua sem mudanças significativas. Continuam cumprindo suas obrigações, como no passado. Entretanto, enquanto, no período do Império, eram notados, como sendo “A turma do Gari”, hoje se tornaram invisíveis, anônimos. Seria uma ironia do destino? Eis a questão.

O anonimato ou invisibilidade do gari é tão perceptível, que grande parte das pessoas não os notam. O ignoram, mesmo vestindo-se com suas roupas chamativas, de laranja fosforescente, com detalhes de verdes. A indiferença chega ao limite de não receber dos habitantes, pelo menos um cumprimento educado: um bom dia, uma boa tarde. São indiscutíveis habitantes do mundo da exclusão. Se o exemplo é uma genuína atitude de descaso ou preconceito, quem sabe? A verdade é que esse comportamento nada digno existe.

No entanto, são eles que fazem o serviço sujo. São eles que limpam a sujeira que as pessoas, sem nenhum pudor, escrúpulo e educação, jogam pelas ruas e calçadas. São eles que “limpam o caminho do incompreensivo”. Ao contrário de muitos países desenvolvidos, onde jogar qualquer objeto nas ruas requer multas educativas. Onde as pessoas, por princípios, guardam nos seus bolsos, as pequenas coisas dispensáveis, para serem colocadas na lixeira mais próxima. Onde os fumantes, têm um lugar específico para saciar o seu vício, sem ter que, contaminar as vias públicas com pontas de cigarros.

Entre os garis, como em qualquer outra atividade, cada um tem suas peculiaridades. É o caso de Isabel, uma jovem senhora, com 25 anos, casada, mãe de dois filhos pequenos – um casal –, profissão gari. Às 5h da madrugada, sai da sua casa na periferia de Goiânia; às 7h já está iniciando sua tarefa de limpeza pelas ruas da cidade.

Na mochila, sua fiel companheira, o seu uniforme de trabalho, que será trocado ao final do expediente, por outras roupas modestas do seu vestuário, no regresso ao lar. Porque, a utilizada no trabalho, não está mais em condições de circular dentro de um ônibus urbano lotado. Assim, aquele uniforme de trabalho repugnante aos olhos das pessoas, possa ser alvo de constrangimentos dolorosos.

Sobre o ombro cansado, sua mochila a tira colo, carrega no seu interior, alguns produtos de higiene pessoal, como batom, papel higiênico, entre outros produtos. Além, é claro, a indispensável marmita. A “cromada”, como ela mesma a define.

Isabel, pela sua condição humilde, dá exemplo de paciência, fé, caráter, bondade e otimismo. Dificilmente reclama da sua condição de vida. Sabe como poucos, a importância da coleta seletiva, do combate à dengue, das cooperativas de catadores de produtos recicláveis. Também, tem os seus sonhos secretos. Consciente de que o mesmo sol que brilha para um rico empresário ou para, uma figura eminente da sociedade, é o mesmo que bilha para ela. Afinal, o sol nasce para todos. Não é o que dizem?

José, seu companheiro de lidas diárias, senhor de 52 anos, trás no semblante, uma aparência superior aos 60. Anos a mais, adquiridos, em decorrência de uma juventude carregada de muitas jornadas de serviços prestados para garantir sua sobrevivência útil, digna e dedicada à família.

Seu Zé, como todos o conhecem e o chamam, é outro morador da periferia de Goiânia. Como Isabel, tem sua história singular: é casado, pai de cinco filhos. O filho caçula, com 15 anos, como os demais irmãos, estuda e trabalha, para orgulho e felicidade do pai amoroso. Seu Zé faz questão de dizer com o peitos estufado e a mão direita sobre o coração: “Com fé em Deus, eles terão um futuro, perante a sociedade, melhor e mais tranquilo que o meu.” Estas são suas palavras redentoras, que o faz cada dia mais forte para encarar, fazendo chuva ou sol, sua obrigação diária.

Talvez pela sua resignação, acostumada com o serviço pesado, seu Zé, é dotado de uma compreensão e alegria incomuns. Todos o admiram pelo seu sorriso farto, e uma capacidade sincera de fazer amigos. Fã incondicional da música sertaneja consegue manter com equilíbrio – melhor até que, a balança representativa e símbolo da justiça dos doutores das leis – o seu trabalho e sustento da família, cantando com espírito elevado, suas canções preferidas, no compasso alegre da companhia dos companheiros de labuta.

Pode parecer ironia, contudo, é bom fazer um breve exame de consciência. verdade não tem como ocultar. Constantemente, deparamos com pessoas privilegiadas pelo estudo, pelo status socioeconômico,  que os notabilizam, ficarem lamentando as pequenezas de suas vidas diárias.

Enquanto outros, fadados da falta nas necessidades básicas essenciais, aquecem os seus dias com ideias construtivas e bons hábitos. Aliados, ao trabalho edificante e de superação à todas as mazelas, com galhardia e distinta nobreza do ser. Transpondo obstáculos, sempre confiantes, num outro dia melhor: o dia seguinte.

Com esses detalhes enobrecedores, imagina-se que, estamos falando de jóias raras. Preciosidades abençoadas por Deus; pessoas quase perfeitas, sem defeitos estigmatizados, mesmo fadados a uma vida árdua. Todavia, como são humanos, tem suas imperfeições, seus pecados. Entretanto, eis a questão: quantas Isabeis existem por aí? Quantos Josés também sentem na pele esses mesmo desafios de sobrevivência?

Esta é a sua oportunidade, de olhar à volta, ampliar sua visão, sensibilizar o seu coração e, notar que eles, os anônimos ou invisíveis, todos os dias vestem a camisa da responsabilidade, cumprindo honradamente suas obrigações, como qualquer outro magnata do alto escalão social, às vezes, com muito mais dignidade.


Imagens: Google