quinta-feira, 26 de maio de 2011

A despedida do trema



A recente reforma ortográfica que passou a vigorar no Brasil a partir de 1º de janeiro de l999, com prazo de adequação em todos os níveis da escrita até 31 de dezembro de 2012, não é a primeira e nem será a última reforma que acontece com a nossa língua portuguesa. Esta última, segundo os entendidos, é uma iniciativa de unificar o seu uso a todos os países que falam o nosso idioma numa única grafia, como: Brasil, Portugal, Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e Angola, eliminando com isto as arestas ortográficas existentes em determinadas palavras como, por exemplo: ótimo e óptimo, ideia e idéia, frequência e freqüência e assim por diante, entendeu?

Para os lexicólogos e os imortais da ABL – Academia Brasileira de Letras, presentes em todas as outras reformas do passado, não se trata de um assunto do tipo “bicho de sete cabeças”, porém, para nós mortais, sem dúvida trata-se de um tratado sem consulta. Ou você foi consultado? Bom, mas o assunto já está em vigor e o prazo não tem elasticidade, ou seja, não pode ser prorrogado, e como exemplo de soberania sobre nós seguidores, a prática já é critério de avaliação nos vestibulares, concursos e provas escolares. Se nós não fomos consultados, imagina os sinais ortográficos e as letras alfabéticas envolvidas que mudaram sua estética ou foram sucumbidos sumariamente, como foi o caso do “trema”. Este teve que se exilar para outros países mais amistosos como é o caso da Alemanha e o leste europeu que o adora.

Esta crônica divertida e até melancólica, que estou publicando, sobre a nossa personagem “Trema” – não considere o sentido literal – não suportando sua insignificância na gramática da língua portuguesa, resolveu dar o seu último grito de dor e tornar público sua tristeza diante da decisão de torná-lo inútil na nossa grafia por conta da nova “Reforma Ortográfica”. O autor desta preciosa dialética eu desconheço. Mas se alguém souber quem a criou, sem dúvida e com convicção, me informe, faço questão de anunciá-lo.

Em tempo: O autor é Lucas Nascimento que a apublicou pela primeira vez na Revista Offline nº 16, em maio de 2010, conforme informação do próprio autor através de comentário no site Sentinela Cultural - sentinelacultural.bligoo.com.br.
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A despedida do Trema







Estou indo embora. Não há mais lugar para mim. Eu sou o trema. Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüiféros, nas lingüiças e seus trocadilhos por mais de quatrocentos e cinqüentas anos.

Mas os tempos mudaram. Inventaram uma tal de reforma ortográfica e eu simplesmente tô fora. Fui expulso pra sempre do dicionário. Seus ingratos! Isso é uma delinqüência de lingüistas grandiloqüentes!...

O resto dos pontos e o alfabeto não me deram o menor apoio... A letra U se disse aliviada porque vou finalmente sair de cima dela. Os dois pontos disse que sou um preguiçoso que trabalha deitado enquanto ele fica em pé.

Até o cedilha foi a favor da minha expulsão, aquele C cagão que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra. E também tem aquele obeso do O e o anoréxico do I. Desesperado, tentei chamar o ponto final pra trabalharmos juntos, fazendo um bico de reticências, mas ele negou, sempre encerrando logo todas as discussões. Será que se deixar um topete moicano posso me passar por aspas?... A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K, o W "Kkk" pra cá, "www" pra lá.

Até o jogo da velha, que ninguém nunca ligou, virou celebridade nesse tal de Twitter, que aliás, deveria se chamar TÜITER. Chega de argüição, mas estejam certos, seus moderninhos: haverá conseqüências! Chega de piadinhas dizendo que estou "tremendo" de medo. Tudo bem, vou-me embora da língua portuguesa. Foi bom enquanto durou. Vou para o alemão, lá eles adoram os tremas. E um dia vocês sentirão saudades. E não vão agüentar!...

Nos vemos nos livros antigos. Saio da língua para entrar na história.



Adeus,

Trema.


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Imagem: Google


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terça-feira, 17 de maio de 2011

O homem do campo e suas verdades



Existem situações em que a gente não tem como evitar. Esta crônica, por exemplo, que estou publicando, foi-me enviada por e-mail, acredito pelo menos três vezes por pessoas diferentes. O seu conteúdo foi a maneira que Barbosa Melo e Luciano Pizzatto, encontraram para descrever o paradoxo existente entre a realidade urbana e a do campo.

Sob o formato de uma carta/sátira, o texto além de muito interessante, transmite com muita propriedade verdades reais, inegáveis e incontestáveis. Prova inequívoca de que existe maquiagem entre a verdade urbana e a rural exaltando suas diferenças, e estas diferenças precisam ser avaliadas com mais critério e se possível eliminadas. A crônica está sendo transcrita na íntegra, sem qualquer mudança gramatical ou textual. Leia com atenção e se possível fazendo sua análise pessoal.

Com adaptação de Barbosa Melo, esta carta foi escrita por Luciano Pizzatto, engenheiro florestal, especialista em direito, sócio ambiental e empresário; Diretor de Parques Nacionais e Reservas do IBAMA nos anos 1988 e 1989. Também foi ganhador do Prêmio Nacional de Ecologia.


Carta do Zé agricultor para Luis da cidade



Prezado Luis, quanto tempo.



Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo. Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava.

Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo?... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra né Luis?

Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. Tô vendo todo mundo falar que nóis da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sítio do pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.

Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né Luis?

Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né ...) contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nóis num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana aí não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?

Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encumpridar uma cama, só comprando outra né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.

Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luis, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.

Depois que o Juca saiu eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e meia, aí eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.

Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ía fazer, mas só que eu sozinho ía demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luis, aí quando vocês sujam o rio também pagam multa grande né?

Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado.

Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora! Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.

Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo aí eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.

Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, aí tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.

Eu vou morar ai com vocês, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Aí é bom que vocês e só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nóis, os criminosos aqui da roça.

Até mais Luis.

Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.


Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em
dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.

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Imagens: Google imagem





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